sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Livro


“Poemas não são de quem escreve, mas de quem precisa deles”.
                                                O Carteiro e o Poeta, de Michael Radford


Há poucos dias me deparei em uma situação desconfortável: estar frente a prateleiras de livros e não saber o que escolher. Bem mais fácil nas seções de literatura infantil, mas quero escolher para mim, descobrir outro Machado, quem sabe, que me devolva o prazer de sermos só nós dois, eu e o livro.

Passei os olhos e as mãos e vi que desconheço a maioria dos novos autores brasileiros. Escondido em meio a tantos volumes, encontrei  Livro”. Senti as pequenas letras em relevo da capa, quase amor à primeira vista — LIVRO, romance de José Luís Peixoto, escritor português, perdido na estante de literatura brasileira. 


          “A mãe pousou o livro nas mãos do filho. Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito  para o objeto que suportava. Pensou em cheirá-lo, mas a porta do quintal estava aberta, entrava luz, havia muita vida lá fora. O rapaz tinha seis anos, fugiu-lhe a atenção, distraiu-se, mas não se desinteressou pelo livro, apenas deixou de o interrogar enquanto objeto em si, começou a questioná-lo de maneira muito mais abstrata, enquanto intenção, enquanto sombra de um ato”.        
José Luís Peixoto: Livro. Companhia das Letras, 2012.


Seis anos e um livro. Reler esse início fez-me lembrar que Sofia completa seis anos e que amanhã volto às prateleiras de livros infantis. Ler aos cinco anos, aos quatro, por que não? Para cada idade, um universo de sonho e imaginação. Lobato na infância, Machado de Assis, eterno. Hoje, José Luís Peixoto. LIVRO, desde o título, despertou minha curiosidade, como também o livro que Ilídio recebe da mãe. Lembro de Elza de Moura, educadora mineira, justificando a dedicatória que não fez: “Livro não tem dono, você lê e passa adiante”. Realmente, livros são de quem precisa deles.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Hipóteses



Hipótese é uma formulação provisória com intenção 
de ser demonstrada, uma suposição admissível ou não.


Há bastante tempo procuro compreender o significado das hipóteses colocadas constantemente em textos relacionados à alfabetização — hipótese silábica, hipótese alfabética, hipótese conceitual, hipótese que gera inúmeros conflitos cognitivos! Em mais uma tentativa, fiz o teste de conhecimento direcionado a alfabetizadores, Interpretação de hipóteses da escritano site da revista Nova Escola (teste removido). 

Admiro quem consegue decifrar o significado dessas sequências escritas. Para mim, o enunciado já é um enigma. Enigma me faz lembrar Conan Doyle e da capacidade de dedução de Sherlock Holmes: simplificar o que parece um problema insolúvel. Entretanto, o que vejo nesses exercícios é o oposto: complica-se o que é simples. Confira as teorias de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky inspiradas em Piaget: A gênese da língua escrita

Analisando o resultado do aprendizado de algumas crianças que iniciaram comigo o processo de alfabetização, constato que não houve necessidade alguma de exercitar minha capacidade de dedução.


Quando escrevem
TATU quer dizer tatu, 
SOPA quer dizer sopa, 
ABACAXI significa 
simplesmente abacaxi!





Edson, 5 anos 
Gabriel, 5 anos

E quase sempre posso identificar o autor pelos traços das letras, mesmo que não escreva seu nome. É o que acontece quando se permite ser diferente. 









Kauã, 5 anos, 
inconfundível!







Maria Helena, 4 anos


 Francielly, 5 anos



O desenho totalmente livre desenvolve a coordenação motora para a escrita manual. E tudo é feito com prazer e capricho, pois a escolha é de cada um. Sugerir cópias de letras e desenhos iguais é desprezar a imensa criatividade e capacidade de aprendizado de uma criança. 



 Maria Eduarda, 5 anos



Luis Gustavo, 6 anos

Todos os registros acima foram feitos entre 18 de fevereiro e 2 de junho de 2010, durante um breve convívio com um grupo de 23 crianças — ao todo, 22 horas em 32 dias. Ao final, a maioria podia escrever palavras simples e iniciaram o processo de leitura. Alguns foram além, como Luis Gustavo, que leu qualquer palavra sugerida e até pequenos livros: estou treinando para ler em alta velocidade, foi o que disse na última vez que nos encontramos. 

Tenho que considerar a hipótese do aprendizado impecável dessas crianças ter sido uma mera coincidência e a facilidade para entender o processo da escrita uma simples obra do acaso. Mas qual o motivo de tantas não conseguirem ler? Há várias hipóteses. A que mais me intriga assemelha-se a um jogo de cabra cega, mas todos de olhos vendados — quem procura não encontra e quem deve orientar também não vê.

domingo, 15 de abril de 2012

Ler, ler!

Ler é exatamente transformar letras em sons e juntá-los formando palavras, ou seja, decifrar a escrita. Nada de novo até esse ponto. Na Antiguidade, os alunos eram alfabetizados aprendendo a ler textos escritos e depois copiando-os exaustivamente. Entretanto, muitas pessoas aprendiam a ler sem ir para a escola, já que não almejavam tornarem-se escribas” (CAGLIARI, 2010)

“Aprender a decifrar a escrita, ou seja, ler, relacionando os caracteres à linguagem oral, devia ser o procedimento comum. Aqui, não era preciso fazer cópias nem escrever: bastava saber ler. Para quem sabe ler, escrever é algo que vem como consequência.” (CAGLIARI, Alfabetizando sem o Bá Bé Bi Bó Bu. Scipione, 2010)

Tenho visto crianças escrevendo espontaneamente, após um curto período de leitura contínua de livros infantis. As primeiras frases surgem pela simples vontade de se comunicar, exatamente como todos nós. E nada mais agradável que aprender os recursos da escrita com a leitura, a partir de frases curtas, observando a pontuação, até a construção de pequenos textos. 


O livro é a principal fonte de aprendizado para a criança, desde que adequado à sua idade, tendo o orientador a importante tarefa de selecioná-lo e apresentá-lo em seu dia a dia.


Ivan, 5 anos (1998)

Desde o início da aprendizagem, as crianças sabem exatamente o que é desenho e o que é escrita, podendo juntar as duas linguagens para compor o que pretendem comunicar. Ler e desenhar faz o processo da escrita acontecer naturalmente. E, para dúvidas ortográficas, a melhor solução ainda é a leitura. Então, o que justifica uma criança passar horas copiando letras, palavras, sem a certeza que estará lendo após todo esse desgaste?

Nicoly aprendeu a ler entre janeiro e abril de 2009, aos quatro anos e meio. Foram vinte encontros, totalizando, no máximo, cinco horas de “estudo”. Brincávamos com as letras em EVA, formávamos algumas palavras e ela desenhava. Algumas vezes, só desenhava. Ao final desse período, iniciou a leitura de pequenos livrosadquirindo bastante fluência em poucos meses. Ler sozinha, que prazer!

Nicoly, 5 anos: Chapéu de Palha, Mary França (Ática)

A leitura de crianças alfabetizadas após os sete anos apresenta resquícios da silabação, tais como: os sons das vogais A, E O (Á, É Ó) assimilados com ênfase desde a pré alfabetização, interferindo na leitura de palavras com os sons Ã, Ê e Ô (VÉRMÉLHA, NÁÓ, CÓR); o deslocamento da sílaba tônica de algumas palavras (MÁÇÃ, NÁÓ); e separação de vogais em uma mesma sílaba (NÁ-O, E-U, PO-IS). Mas, aos poucos, é possível ler fluentemente no próprio dialeto. 

Ainda há mais um desafio para essas crianças: equilibrar a possibilidade de leitura e escrita momentânea com o conhecimento exigido pela escola que, a todo instante, cobra resultados pelo que não proporcionou — uma alfabetização que possibilite ler e escrever com facilidade e segurança.

sábado, 7 de abril de 2012

Quando alfabetizar


Ao ler, transformamos automaticamente letras em sons. Juntamos os sons formando palavras, sem pensar que estamos o tempo todo decifrando letras. Mas, para o iniciante, identificar os sons de cada letra é ainda o primeiro passo rumo à leitura.

Desde a primeira vez que alfabetizei, as letras do alfabeto móvel sempre estiveram ao alcance das crianças, na mesa ou mesmo no chão, para que fossem tão atraentes quanto os brinquedos. A ideia de brincadeira remete a outra questão: qual a melhor idade para alfabetizar? 

Se a criança não sentir a diferença entre brincar e aprender, vale começar ainda bem pequena, com o aprendizado diluído em um período mais longo. Entretanto, se a alfabetização for um processo penoso, com inúmeros deveres na escola e em casa, não há momento adequado na infância que justifique tal intromissão em seu dia a dia. Resumindo, o fator mais importante é a maneira de conduzir a alfabetização.

Ensinei várias crianças a ler, quase todas entre quatro e doze anos de idade e apenas uma com menos de três anos. A principal diferença foi o tempo de aprendizado. Crianças maiores, que já passaram pela alfabetização escolar, em geral leem em poucas horas. Porém, dependendo de quanto estão frustradas, demoram para aceitar mais uma tentativa. Já as pequenas têm um ritmo especial, que varia com o humor, o sono, a fome e a concentração. 

Uma criança que lê aos cinco anos ainda terá um ano para aprimorar a leitura e começar a escrever, antes de iniciar o Ensino Fundamental. Porque ler mais cedo não significa pular etapas. Ao contrário, é ter tempo suficiente para adquirir fluência na leitura e autonomia para resolver as questões colocadas pela escola. E, como consequência de uma leitura constante e prazerosa, escrever com facilidade e segurança. Não é o que todo professor precisa numa classe a partir do 2º ano do Ensino Fundamental?

sábado, 24 de março de 2012

O som das letras


Música e linguagem têm vários pontos semelhantes. Na música, os sons se unem em sequência, formando uma frase musical ou uma melodia. Na linguagem falada, da mesma maneira, cada palavra ou frase é formada por pequenos sons que também se unem em sequência. Ambas têm o som como matéria prima, registrados, na forma escrita, por pequenos símbolos: notas ou letras. Ler, então, é transformar cada letra de uma palavra em sons, exatamente como na música: ler uma partitura é transformar as notas escritas em sons. O que nos interessa, neste momento, são os sons, mas os sons das letras.

Na língua portuguesa, com exceção da letra H, todas as vogais e consoantes têm sons. É simples assimilar o som das letras, se relacionarmos cada letra ao som inicial de uma palavra. A letra P, por exemplo, relacionada a PATO e PIPOCA, ou melhor, a letra do PATO e da PIPOCA. Ao substituir o nome das letras por palavras iniciadas pelas mesmas letras, mantêm-se o objetivo do princípio acrofônico*identificar o som que a letra representa — e evita-se que alguns nomes de letras, como M R, por exemplo, dificultem o aprendizado. Então, melhor dizer: a letra da MAMÃE e a letra do RATO.

Em nosso alfabeto, considerando os sons do início das palavras, há letras com um único som, como B, J, I ou U; outras com mais de um som, como A, E, O, G e C e a letra H, sem som algum. As letras D e T podem ter sons distintos nas palavras DEDO e DIA ou TATU e TIAGO, devido a diferenças dialetais, o que não será considerado no momento.


SONS DAS LETRAS NO INÍCIO DAS PALAVRAS
A, dois sons: AZUL, ANZOL
N, um som: NAVIO
B, um som: BONECA
O, dois sons: OVO, ÓCULOS
C, dois sons: CAMA, CEBOLA
P, um som: PIPOCA
D, um som: DEDO
Q, um som: QUEIJO
E, dois sons: ESCOLA, EVA
R, um som: REI
F, um som: FACA
S, um som: SAPATO
G, dois sons: GATO, GIRAFA
T, um som: TAPETE
H, nenhum som: HOMEM
U, um som: URUBU
I, um som: ÍNDIO
V, um som: VIDA
J, um som: JANELA
X, um som: XÍCARA
L, um som: LARANJA
Z, um som: ZEBRA
M, um som: MALA
K, W, Y: letras não relacionadas


Quem orienta a alfabetização precisa saber, com clareza, o que envolve essas pequenas diferenças e mostrar somente o necessário a cada momento do aprendizado. Exatamente como indicar um local num mapa. Há sempre um caminho mais simples e mais curto entre dois pontos, entre outros. Considerando o tempo, trânsito e facilidade de acesso, optamos por um deles. Escolhi o caminho mais simples para alfabetizar. Acabou sendo o mais rápido.

* Ver princípio acrofônico em  O nome das letras

quarta-feira, 21 de março de 2012

O desenho


Ler e escrever exigem o mesmo conhecimento inicial: os sons das letras. Para ler, identifica-se a palavra escrita a partir do som de cada letra, transformando letras em sons. Para escrever, num procedimento inverso, identifica-se, também pelo som, cada letra da palavra falada, transformando sons em letras. Porém, escrever requer uma habilidade a mais: coordenação motora bastante apurada para traçar manualmente as letras, incomum entre crianças de quatro a seis anos e pouca intimidade com lápis e papel. A solução é o alfabeto móvel: facilita o início da alfabetização, evitando que a dificuldade motora interfira no aprendizado.

Manusear diariamente as letras faz a criança reconhecer as formas de cada uma naturalmente, pelo contato manual. Brincar com as letras, colocá-las em espelho, fazer torres com formas idênticas são atividades que desenvolvem sozinhas. Sentir, tocar, comparar as linhas retas, as linhas curvas, observar as semelhanças e diferenças entre cada letra é o caminho mais rápido para a escrita manual.

Mas, e a coordenação visomotora? E as linhas pontilhadas, os risquinhos prá lá e prá cá, as cópias de letras? E o dever de casa para a criança e, principalmente, para a mãe da criança

— Que tal substituir tudo por apenas papel em branco? 

É inacreditável o que uma criança pode fazer quando lhe é dada a liberdade numa folha de papel. Certamente, vai começar por uma das atividades mais importantes e prazerosas — desenhar! Desenho, sim, desenho livre, tão simples: papel em branco, lápis preto e seis cores apenas, nada mais. Tão pouco, mas com resultados surpreendentes no aprendizado.

Ana Luiza, 6 anos

Francielly, 5 anos


Os desenhos de Ana Luiza, Francielly e Nicoly
foram inspirados no livro Chuva!, de Mary França,
com ilustrações de Eliardo França (Ática, 2010). 

Ana, que vê a chuva da janela, e seu guarda-chuva.
Chuva que molha o mar, molha o tico-tico no galho
e  o caranguejo molhado do mar.

Nicoly, 4 anos
 Sofia, 4 anos

É indispensável o desenho livre durante toda a alfabetização, para a criança desenvolver a criatividade, a concentração e, inclusive, a coordenação motora. É através do desenho que a criança chegará aos textos. Desenhando, reproduz o que vê e imagina, enquanto acumula dados suficientes para escrever. Agora sim, podemos falar sobre o som das letras.